segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Bergson numa crônica recortada

Ontem cheguei de São Paulo no início da tarde e fui direto pegar meu filho Guilherme pra curtir o nosso dia juntos. Trocamos presentes - ganhei uma belíssima caneca com um desenho dele e lhe dei brinquedos e um livro sobre os nossos "primos" símios -, conversamos muito, jantamos e depois fomos ver o que ainda restava de tarefa da escola pra essa segunda feira. Ele ainda tinha de localizar e recortar um texto com pelo menos cinco palavras com acento agudo e três com circunflexo. Fomos ao jornal O POVO de domingo e, aproveitando pra ler a coluna Das Antigas, onde o jornalista Demitri Tulio nos delicia com belas histórias aos sábados. Coisa mais certa que fiz. Rapidinho a tarefa escolar foi resolvida e ainda lemos uma saborosa crônica, que despertou a atenção do meu filhote, onde o Bergson Gurjão finda sendo o personagem, ou o mote principal do texto. Achei logo que deveria compartilhá-la com muito mais gente e por isso a trouxe todinha aqui pra você também ler.

Deleite-se com o talento e a sensibilidade do jornalista:


Só no ano 2000 ou um dia eu apareço

Achava que o ano 2000 não chegaria. Distante, enigmático. E, se chegasse, havia a possibilidade de o mundo se acabar. Por fogo, água inundando tudo ou exterminado por causa da tão aguardada III Grande Guerra Mundial. Na escola, numa daquelas segundas-feiras chatas pela manhã, a discussão entre os pré-universitários era uma reportagem do Fantástico (o show da vida!) sobre a profecia de um misterioso Nostradamus. Arco, flecha e o fim.

Do basculante da sala de receber, se viam os dias dos anos 70 correrem num fusquinha café-com-leite. Quente, fedido de gasolina cara. Combustível comprado no mocó, porque as bombas estavam proibidas a partir da sexta-feira à meia-noite, no sábado e domingos-família. Em preto e branco e racionamento general.

No ano 2000, não haveria assim. Seria em cores, dentro de uma nave espacial dos Jetsons movida à casca de banana de fazer voar e soltar fumaça de doce Real. Por enquanto, ainda andávamos Flinstones. Empurrando o fusca para pegar no tranco e quase sempre pifar em frente ao portão do colégio. De mangar de quem não tinha um Corcel (azul caixão de anjo) zero bala.

Mas era uma questão de tempo. No futuro, 30 anos prafrentex, seríamos outros. Aprovados no vestibular da Medicina, acadêmicos do Direito ou concursados do Banco do Brasil ou do Instituto Rio Branco. Finalmente testar o inglês. O ano 2000, se não acabasse com os mundinhos, prometia.

Só no ano 2000 seríamos, finalmente, felizes. Casa com bidê, banheiro com descarga em vez de balde e chuveiro grosso no lugar da bacia de alumínio. O guarda-roupa viria embutido numa parede de algum conjunto residencial do Bradesco. Piso no taco. Garagem, área de guardar o Opala (Opala?), grama, pé de jambo lilás, jardim de inverno suspenso próximo à mesa de almoçar e periquitos australianos (verdes e amarelos) trilando.

Quem se formasse, tardaria, iria adquirir até uma linha telefônica e não perturbaria mais o vizinho nas horas mais incômodas. Notícias de Bergson? Não. Bem... Compraria uma enceradeira, um Mido e um filtro ozonizado que ficaria acoplado à torneira da cozinha azulejada...

Queria que 2000 rebentasse logo, mesmo com medo dos boatos sobre o derradeiro. De se imaginar encerrado, mutemo, censurado. Mas fez assim, se juntou com alguns bons amigos (flor da idade) e foi protestar após o vestibular. Fez carreira, levou bordoada, foi preso, torturado, solto, mas não se aquietou. Era novo demais para não apostar.

Não iria esperar pelo ano 2000. Mesmo correndo o risco de desviver, foi guerrilhar. Por ele, por Tânia fraterna, contra o fim do mundo... Num 1972, Luíza sobressaltou-se do nada. “Desviveram meu filho”. Choro.

E foi. Não viu o 2000 virar nem soube que ainda se torce por uma espetacular III Guerra
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